Travessias: na Igreja de Cristo, na Missão de Deus, no jeito anglicano de viver a fé!
Levem as suas cargas mutuamente, e assim cumprirão a lei de Cristo.
Gálatas 6:2
Queridas irmãs e queridos irmãos do Clero e Laicato
de nossa Diocese Meridional, de nossa Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.
Graça e Paz da parte do Deus Libertador,
que acompanhou a travessia do mar, tirando o seu povo da escravidão,
que guiou para a travessia do deserto e depois do rio, introduzindo o seu povo na terra prometida,
que, através do Servo Sofredor, Cordeiro Pascal, na travessia da Cruz e Ressurreição, retirou o poder da morte
e deu para a humanidade a vida eterna,
que nos acompanha em todas as nossas travessias,
travessias que nos levam para o Novo Céu e a Nova Terra, em Cristo Jesus Nosso Senhor:
1. Quando começamos a preparar este 124º Concílio da Diocese Meridional, nas mentes e corações das pessoas que compõem a Comissão de Planejamento Pastoral e Missão, logo surgiu a palavra e a percepção de “travessia”. Travessia nada mais é do que outra forma de dizer “Páscoa”, que literalmente significa “passagem”. Sendo assim, travessia define a ação de Deus em toda a história, desde a libertação do seu povo pobre e escravizado, quando se revela como Deus que “acontece”, abraçando toda a humanidade a partir das pessoas mais vulneráveis (cf. Êx 3:14 e Lc 4:18-21). A nossa vida é, também, uma travessia que sai de Deus e volta para Deus. Assim nos entendemos como pessoas peregrinas, rumo ao Reino, como afirma a Oração do Senhor (Pai Nosso, “Venha o Teu Reino”).
2. A Igreja Peregrina vive na travessia entre o tempo da Páscoa e o tempo da Volta em Glória e do Senhor (reafirmando isso em cada Eucaristia ao repetir o Mistério Eucarístico da Fé: “Cristo morreu, Cristo Ressuscitou, Cristo Voltará”). Entre todas essas travessias, celebramos, neste Concílio, o Centenário da Paróquia da Ascensão, que nos hospeda. Também, neste Concílio, iremos visualizar e desenhar, com ajuda do Espírito Santo, os rumos da nossa travessia diocesana, ao aprovar uma metodologia, isto é, um caminho, para fazer uma avaliação geral diocesana a partir da nossa Visão e Missão. Neste ano a nossa Igreja Episcopal Anglicana do Brasil se reúne em Sínodo Extraordinário para realizar uma travessia desde um ordenamento canônico, que se mostrou desorganizado, defasado, e confuso, para outro que ofereça mais condições de segurança institucional e ação missionária no novo contexto social e jurídico brasileiro. A Comunhão Anglicana, que há poucos dias terminou a reunião do seu Conselho Consultivo em Lusaka, Zâmbia, na África Central, também apontou para as necessárias travessias, que incluam diferentes formas de entender a missão da igreja, e a dignidade das pessoas, diante dos desafios do mundo pelo que Nosso Senhor foi oferecido em sacrifício amoroso e generoso (cf. Jo 3.16).
3. Sabemos que não há travessia fácil, nem totalmente segura. Toda travessia inclui riscos, ao tempo que reserva momentos de particular beleza e de grandes descobertas. A nossa esperança é saber que Deus sempre esteve com seu povo em todas as travessias! O Evangelho nos fala de uma travessia de barco pelo lago da Galileia. Jesus, em uma atitude aparentemente omissa, dormia, em claro contraste com o estado psicológico dos discípulos, que o acordam dizendo: “Mestre, mestre, estamos perdidos!” (versão Bíblia Sagrada Vozes) ou “Mestre, Mestre, perecemos” (versão Almeida), ou ainda, em uma livre tradução do grego, “Mestre, Mestre, seremos destruídos!”.
4. Será que como Diocese, como Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, e até em algumas comunidades cuja participação tem diminuído, não temos este mesmo sentimento que aqueles discípulos sacudidos violentamente pelo mar e pelo vento, em seu pequeno barco? Será que não somos sacudidos por inseguranças e dúvidas? Será que nossa comunidade vai continuar depois desta geração? Será que não iríamos também acordar o Mestre, que dorme, e perguntar, de onde virão as pessoas que vão continuar depois de nós, Mestre? Acorda, somos uma comunidade perdida, vamos morrer!
5. Será que diante da enorme dívida que carregamos pelos erros administrativos do passado, e as dificuldades enfrentadas junto a nossa diocese irmã, e companheira na dívida, além das dificuldades de encontrar novas pessoas contribuintes e aumentar o valor das contribuições em nossas comunidades, não acordaríamos o Mestre, dizendo: “Acorda, seremos destruídos!”?
6. Será que diante da insistência de nossa Igreja, junto a uma parte da Comunhão Anglicana, de seguir o caminho missionário da inclusividade, preferindo abordar assuntos difíceis e polêmicos (que nem tem unanimidade na própria igreja), antes de se omitir – como a situação política do país, a violência doméstica, as questões de gênero e orientação sexual, a crise do planeta sendo destruído – sendo, por outro lado uma igreja tão pequena, tão frágil, não iríamos acordar o Mestre e dizer: “acorda, vamos perecer!”? Certamente, temos muitas outras razões para nos identificar com a atitude daqueles discípulos no meio da tempestade, naquele pequeno barco, no mar da Galileia.
7. Embora haja uma narração semelhante nos outros Evangelhos (Mt 14:22-34, Mc 6:45-52 e Jo 6:16-21), Lucas mostra Jesus dentro da barca e, embora os outros não usem neste relato a palavra Mestre, ele usa uma palavra diferente para se referir a este título de Jesus. Em lugar de “didáscalos” (o que utiliza a didática, isto é, ensina), usa “epistáta”, isto é, aquele que está junto, que mostra como alcançar o conhecimento (mas como um “tutor” ou “professor particular”). Assim, quando, na versão de Lucas, os discípulos chamam Jesus dizendo “Epistáta” querem dizer: “Tu que estás conosco para nos ajudar a entender o sentido desta travessia, acorda, estamos perdidos”!
8. De fato, Lucas, como pesquisador, dedica a obra do Evangelho e Atos dos Apóstolos a uma pessoa que ele chama “Teófilo” (Lc 1:3 e At 1:1). Esta pessoa – a quem Lucas dedica sua obra inspirada por Deus – estava buscando o sentido da travessia, que nós também buscamos neste Concílio. Teófilo, que literalmente significa “O que ama Deus”, estava sendo sacudido por muitas doutrinas e histórias sobre Jesus (Lc 1:1). Lucas não pretende esclarecer tudo, mas levar Teófilo ao encontro com o Epistáta, que sim pode lhe mostrar o jeito de fazer todas as travessias, superando todas as tempestades!
9. Por outro lado, Lucas, além de um grande pesquisador teológico, o primeiro da história do cristianismo, foi o maior admirador, e quase que biógrafo, do apóstolo Paulo. Lucas percebeu como ninguém que este apóstolo era um grande exemplo de como fazer travessias. Paulo tinha sido educado no mundo greco-romano, na cidade de Tarso, e também na escola judaica do farisaísmo legalista, na cidade de Jerusalém (uma travessia que o levou a ser um perseguidor da Igreja, patrocinando a morte do primeiro mártir cristão, Estevão). Depois, durante outra travessia, agora no deserto, tem um encontro dramático com Jesus ficando cego. Depois de ser acolhido pelas pessoas que ele perseguia, de abrir os olhos para uma nova visão da vida, da fé, e do amor, torna-se o maior missionário de Cristo que jamais existiu (cf. 1 Cor 15:9).
10. Em outra travessia, durante uma viagem missionária, onde fica gravemente doente, Paulo, acidentalmente, é acolhido pelas comunidades da Galácia (Gl 4:13-14). Da carta, que tempos depois, tentando evitar que estas comunidades fossem enganadas por pregadores legalistas, é que vem o versículo que tomamos como lema do 124º Concílio da Diocese: “levem suas cargas mutuamente e assim cumprirão a lei de Cristo” (Gl 6:2). De certa forma, toda a Carta ao Gálatas é para explicar como continuar caminhando apesar das tempestades. Neste caso, tempestades de doutrinas escravizadoras que ele chama de “outro evangelho” (Gl 1:6). O Mestre, agora, deve ser acordado através do Espírito Santo que está dentro de cada pessoa e constrói e capacita as comunidades! (cf. Gl 5:5,22,25). Acordar o Mestre é deixar que o Espírito lhe guie ao serviço mútuo! (cf. Gl 5:13). Assim entendemos, por que Paulo, no meio desta tempestade, diz: “Levem suas cargas mutuamente e cumprirão a lei de Cristo”!
11. O princípio de “levar mutuamente as cargas” provém do mesmo Espírito Santo, com que o Mestre acalma as tempestades em todas as travessias! Levar as cargas mutuamente é edificar-nos como pessoas e comunidades, como Igreja, no amor de Cristo, tornando-nos Corpo de Cristo, presença de Cristo na Vida, no Mundo, na História! Enfim, seguindo a travessia da Missão de Deus no horizonte do Seu Reino.
12. Aqueles discípulos apavorados no pequeno barco no meio da tormenta, as comunidades da Galácia, que, depois de acolher Paulo e com ele o Evangelho, recebem doutrinas contrárias que abalam sua fé, nós e nossas dúvidas sobre o presente e o futuro, não sentimos, às vezes, que Jesus Cristo está dormindo? Como poderemos levar as cargas, as cruzes, pessoais, familiares, comunitárias, sociais, políticas, econômicas, religiosas, se Cristo está dormindo? Bem, se isso acontece, devemos acordá-lo! Mas onde está? Em qual parte do barco ele repousa em seu sono tranquilo? Só pode estar em uma parte: na parte de dentro! Dentro de nós, como cada pessoa batizada, e mais ainda quando confirmada. Dentro de nós, como comunidade de fé, dentro do clero e do laicato, dentro das juntas paroquiais e conselhos de missão, dentro de todas as nossas relações de amor e vida, de partilha e compromisso, de fé e esperança! Dentro de nós, como Dioceses e Província lideradas espiritualmente pelas pessoas que exercem o episcopado, junto aos Concílios e Sínodos, e todas as estruturas e órgãos que criamos para fazer este Corpo refletir melhor o Corpo de Cristo! Dentro de nós, Comunhão Anglicana em nossa imensa diversidade e liberdade, nos instrumentos da nossa unidade, Arcebispo de Cantuária, Reunião de Primazes, Conferência de Lambeth e Conselho Consultivo Anglicano! Dentro de nós, Igreja de Cristo, com todas suas contradições, suas unidades, suas diversidades! Dentro de nós, humanidade, vivendo neste planeta náufrago no mar do lucro, do progresso egoísta, da desigualdade, do preconceito, da violência, da destruição e da guerra! Sempre, sempre dentro de nós! Somente ali pode estar Jesus, e ali deve ser acordado!
13. O nosso interior é o lugar habitado pelo Espírito de Deus, templo do Espírito, onde nascem todas as nossas relações! Ali, dentro de nós, onde dorme Jesus e habita o Espírito, está a verdade incontestável de que Deus sempre nos enviou ajuda, mesmo quando, em nosso endurecimento de coração e em nossa miopia espiritual, não soubemos aproveitar. Ali, dentro de nós, está a memória de quanta ajuda já recebemos com nossas cargas, quantas tempestades já foram acalmadas, e quantas travessias já foram concluídas, por causa do Mestre e do Poder do seu Santo Espírito! Ali, dentro de nós, sabemos que é verdade que só quando carregamos mutuamente nossas cargas é que cumprimos a lei de Cristo, que é o amor! Ali, dentro de nós, ouvimos a voz do Mestre repreendendo o vento e o mar que querem nos destruir, e desde ali, dentro de nós, é que vamos abrindo a visão de um sol que teima em amanhecer, vencendo as trevas e revelando o horizonte do Reino. Sim, o Mestre sempre acorda, mas somos nós os que devemos remar, vencer o medo, e continuar procurando no compromisso mútuo e a força para levar este barco para seu próximo destino!
14. Já estamos ouvindo a voz do Mestre no Cursilho de Cristandade, que revelou o poder do Espírito Santo, através de seu primeiro encontro em nossa diocese, no ano passado. Chamamos o Mestre! Aliás, é dali que vem a música que gostaria de cantar com vocês no final desta Carta Pastoral. Mas, mesmo com isso, ainda há gente com medo em nossa igreja. Gente que clama dizendo que nossa igreja está morrendo e não tem nada de novo para oferecer. Por quê? Porque tentamos antes coisas que não deram certo, ou não tiveram continuidade? Então, deixaremos o Mestre dormindo, o Espírito Santo fechado, e vamos pular fora do barco? Ou vamos acreditar e carregar, como estas pessoas já estão fazendo, nossas cargas mutuamente?
15.Temos esta ação entre amigos diocesana que nasce das sugestões da Primeira Conferência de Padronização Administrativa (buscando uma abordagem cada vez mais participativa e coerente da nossa responsabilidade cristã). De dentro do Grupo Gestor o Mestre Acordou, o Espírito Soprou, e tivemos a coragem de apresentar com responsabilidade e ousadia este desafio. Acreditamos nisso! Aprovamos na reunião em novembro e hoje temos um carro aqui à mostra. Vamos acreditar, ou vamos pular fora do barco e deixar o Mestre dormindo, esperando afundar?
16. Poderia aqui citar muitos outros exemplos do que Deus está fazendo dentro das diversas comunidades de nossa diocese. Há pessoas novas chegando, há desafios novos chamando, há construções físicas e eclesiais acontecendo. O planejamento feito em cada comunidade, às vezes com dificuldade, é um apelo ao Mestre (veremos isso claramente na apresentação do relatório estatístico que seguir uma forma nova nesta reunião conciliar).
17. O Mestre acordou em muitos lugares, e está esperando ser acordado em outros. O Mestre também nos vem ecumenicamente através de organismos como o Dia Mundial de Oração, a Semana de Oração pela Unidade Cristã, a Campanha da Fraternidade Ecumênica, o Serviço Interconfessional de Aconselhamento, o Conselho Nacional de Ensino Religioso, os grupos de diálogo interreligioso como o DIRPOA, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, que é presidido por nós neste biênio, o Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, que nos trouxe recentemente o biblista Ildo Bohn Gass, para nos capacitar a partir do Evangelho segundo Lucas. Quanto disso realmente aproveitamos, e quanto ignoramos?
18. Mas, queridas irmãs e irmãos, sempre haverá outras tempestades pela frente e voltaremos para o Mestre, dizendo: “Acorda, Mestre, estamos em perigo!” E novamente ele fará o que está fazendo, e nos convidará a carregar mais uma vez nossas cargas solidariamente! Não há outro sentido para nossa vida humana e cristã, este é o único caminho para o horizonte da vida e da eternidade, nisto está a alegria de sermos povo de Deus, a alegria de ecumenicamente sermos a Igreja de Cristo, de contribuirmos com nosso jeito anglicano através da Comunhão Anglicana, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, da Diocese Meridional, de cada comunidade de fé, como pessoas batizadas, como irmã e irmão de toda a humanidade e de toda criação! Se lerem o livro escrito por nosso irmão, presbítero e jornalista, Revdo. Osvaldo Kickhöfel, sobre o Centenário da Paróquia da Ascensão – que receberão como lembrança deste Concílio e poderão aqui adquirir – é exatamente o que verão! Foi o que eu vi! Não há nada melhor, nada mais alegre, nada mais significativo, do que carregarmos mutuamente nossas cargas, fazer nossas travessias, e assim cumprir a lei de Cristo!
Paróquia da Ascensão, 29 de abril de 2016 A.D.
Dom Humberto Maiztegui Gonçalves
Bispo Diocesano